quarta-feira, 9 de março de 2011

Dois cristais.

- Valois, cheguei a uma conclusão.
- Pois então diga.
- Meu vazio existe porque eu nunca amei.
- Oh, isso é bárbaro.
- Mas gostaria de de contar-lhe dois preciosos dias que considero os mais lindos da minha existência.
- E por que eles sãos os mais lindos?
- Por que meu vazio foi efêmera e misteriosamente preenchido. E neles eu conheci o amor.
- Conte-me então.

Estava eu, uma doce menina dos olhos soturnos, em minhas ocupações infantis. A saber: dormir, brincar e indagar pro espaço sobre minha existência solitária. Eis que um grande homem- em espírito e em matéria- me leva para uma extraordinária aventura em nossa casa praiana.

Eu gostava muito de ir a esse lugar, pois lá eu me sentia feliz. Tinha apenas um amigo, o meu vizinho, mas a tranquilidade daquela aromático ambiente baixo-serrano, o seu cheiro penetrante de areia e sal, além do saboroso azul que o céu e suas inebriantes brisas me agraciavam, faziam com que eu acalmasse qualquer inquietação que calundasse em me apoquentar.

Ademais, aquele Hércules de amor e paz, com seus sorrisos me fazia sentir uma pessoa amada, querida. Me fazia sentir uma pessoa, me fazia sentir, me fazia. Me fez.

Fomos nós, só nós. Sem as reclamações de meu capanga consangüíneo e uterino, sem a exprobação vociferante da minha criadora. Sem a tristeza companheira, sem o tédio infame dos ingratos e sem nenhum resquício de mágoa- pois ela ainda não existia.

A sonolenta manhã foi marcada por uma longa e dialogada viagem. Descendo a Serra conversamos e tivemos a melhor viagem de ônibus da minha história. Qualquer gesto, palavra ou imagem que escorreu feito líquido dos dedos de minha memória, sacramentou-se em meu coração.

Aquele ser de extrema bravura trabalhou na construção de vigas de suporte para telhas durante horas na tarde em que eu colhia flores, explorava os silenciosos recantos de uma casa semi-abandonada, brincava com caramujos e ouvia o contraponto dos passarinhos.

De repente, o meu vazio foi esvaziando-se como bexiga que ao passar dos dias murcha feito mamilos arrepiados em dias de frio. Distraída com os alegres raios de sol não atentei para aquele detalhe que foi natural como um instinto. E belo como as sensuas Partitas para violoncelo de Bach.

Mas o crepúsculo já nos cumprimentava, e o nosso silêncio lírico era acompanhado pelo canto das cigarras com a harmonia schoenberguiana dos diversos insetos nas suas frases sinfônicas inusitadas.

Já era tempo de adormecer.

E foi então que deitamos na rede, aquela grande amiga das reflexões e das pessoas amadas. E eu abracei aquela figura que foi indubitavelmente a razão do meu viver.

Ele contou-me histórias de sua triste vida para que eu dormisse, mas sempre com aquele toque de alegria e um não-sei-que melódico. Era bonito ver como ele me amava, me protegia e me considerava a pessoa mais importante de todas as suas encarnações.

E foi nesse mesmo momento - ah, mas que bela lembrança!- que ele adormeceu com suas próprias reminiscências e magníficos carinhos que me permitiam transcender essa realidade cruel e sólita. Adormeceu e eu chorei.

Chorei por que tive medo que ele nunca mais acordasse, nunca mais me protegesse e estivesse ali para me consolar. Mas também chorei por me sentir insignificante diante de tamanha grandeza, por talvez não ser digna de tanto afeto.

Logo em seguida me senti bem, porque estava vivendo o momento mas bonito da minha existência e, por algum motivo que não sei, sabia disso.

Auscultando as batidas de seu coração e tentando sem sucesso respirar no mesmo andamento que ele, senti, a cada segundo, minha existência se encher de algum material incognoscível. A sensação foi inexplicável.

Sei que o amor então me envolveu com uma suavidade educada. E senti, naquele repouso noturno, que eu era a pessoa mais completa do mundo. Isso não foi euforia ou felicidade, tampouco prazer ou êxtase. Isso foi a afirmação mais categórica de que eu existo em realidade.

- Bravo! Bravíssimo!
- Ainda não terminou, falta mais outro.
- Pois prossiga, minha querida.

Dez anos aproximadamente me separam desse relato e me transpõe para outro dia em que neguei o vazio.

Muita coisa mudou, meus cabelos cresceram eu de certa forma cresci e a doce menina dos olhos soturnos perdeu quase tudo o que tinha de brando e taciturno.

Mas algo ainda permanecia. Sua essência, quem sabe.

De semelhante, temos o dia de sol, sem o clima praiano, mas pianístico e refrescante.
Lembro-me bem. Foi em um dia de limpeza, no feriado dos negros, que fui chamada para um passeio com doces, sorvetes e direito a conversas recheadas de ósculos e amplexos.

Fui com o meu vestido que me deixava mais meiga e tomei o banho que me deixava mais perfumada. A falta de assiduidade me angustiava. Sempre me chateia. Mas logo o tal cara chegou.

Conversas amigáveis e sem muito conteúdo -pensar muito afasta as pessoas mais vazias- como programado, aconteceu, e a tarde transcorreu com uma dose de monotonia necessária, posto que me deixou ao lado de pessoas que não me agradavam por serem desconhecidas.

Mas o cara, em um gesto insólito, modificou tudo isso e me salvou, deixando de brinde a satisfação do maior anseio do meu vazio: ser completado.

Talvez o cara nunca percebeu, e nunca mais perceberá o quão significante esse gesto foi para mim, se é que o cara alguma vez percebeu que algum gesto seria ou não significante para mim. Se é que alguma vez eu permiti que o cara percebesse alguma coisa, se é que alguma coisa precisasse realmente ser percebida.

O fato é que o entardecer nos convidou para um repouso de ideias. Como se naquele momento eu precisasse parar meus sentimentos e pensamentos para dar vasão aos meus sentidos.

Naquele momento, o tempo parou. A minha solidão se fez ausente.

Posso pular nossos gestos, imagens, palavras- se elas participaram- e ir direto a mim mesma, que é o mais importante.

Eu repousei minha face no colo dele e auscultei seu coração, rejeitando gás carbônico no contratempo em que ele absorvia oxigênio, pois dessa vez eu tinha fôlego para tal.

Então o amor apareceu e tocou no fundo do meu coração com seus dedos leves e delicados. Foi um toque deveras suave e profundo em imponência. E foi ai que novamente minha existência se encheu do mesma tal matéria incognoscível.

Percebi que qualquer prazer, seja ele sexo, alimentos, noites de sono, fartas gargalhadas ou alegrias estonteadoras por divertidíssimos motivos não tem o mesmo calibre que essa grandioso sentimento que me visitou. Por que o somatório de todos esses reles prazeres é ultrapassado em numerosos graus por migalhas de amor ou pequenas gotas de sentimento dessa jaez.

E por isso, deitar meu rosto naquele cerviz, naquela rede qualquer por um tempo indeterminado, incalculável e inexistente, era melhor do que qualquer outra situação, pois ali, naquele escaninho de paz, eu tinha o amor do meu lado, ao meu redor, dentro de mim.

Foi a melhor maneira de me fazer alguém de verdade.
Foi uma eternidade efêmera e confortável.
Fui eu mesma.

- Sim. Entendo.
- E guardo essas duas lembranças como fotos de um momento que eu amei. Mas hoje sei que amei apenas o momento. Eu amei apenas o amor.
- E como se ama o amor?
- Não sei. Não sei como se ama. Sei que um dia se ama. Pode não ser como eu, na praia, no sol, na rede, duas vezes. Mas de alguma maneira o amor se manifesta. Só que eu nunca amei ninguém além do amor.
- Um dia tu amarás.
- Um dia eu morrerei.
- Mas antes disso negará sua morte no amor.
- Valois, você é interessante.
- Por quê?
- Pelo que diz.
- E qual é o problema?
- Você não existe. E por isso é o vazio mais completo que eu conheço.
- Você é uma figura, garota.

Um dia talvez amarei algo além do amor, e saberei disso, porque doravante esse dia, meu vazio se extirpará e só voltará a mim quando meu corpo estiver inerte.

Obrigada.